sexta-feira, 7 de outubro de 2022

Matéria e forma

Em todo o ser material há uma composição de matéria e forma substancial, a forma é o princípio que determina a matéria, a essência do ser, sem ela o ser deixa de ser aquilo que é. A forma substancial é o ser em ato, a matéria é o que tem a potência de se tornar em ato, o fundamento de todo o devir. É isto que nos diz a filosofia hilemorfista de Aristóteles e Tomás de Aquino.

Nos vegetais e animais, a matéria é ordenada potencialmente a ter vida vegetal ou animal, que lhes é dada pela sua forma substancial material. Assim, a vida de uma planta ou de um animal, corresponde à sua forma substancial, a morte do animal e da planta, nada mais é que a perda de sua forma animal ou vegetal, apenas isso. Na planta e no animal não há então nenhum princípio vital extrínseco à matéria.

O problema é como se dá a constituição do ser vegetal e do animal pela atualização da potencialidade da matéria a ter vida. Em outras palavras, como a potência da matéria a ter vida é atualizada por sua forma, sem a qual ela não é nem vegetal nem animal.
A noção de potência requer sem dúvida um profundo esforço de abstração e compreensão, mas sem ela é impossível conceber ou explicar a natureza íntima da matéria, e mais especificamente, a mudança que esta sofre na personalidade de essência.
É claro que a pura potência não existe, ela permanece, sempre, capacidade metafisica, a fonte passiva para o corpo total, e por conseguinte não existe a pura matéria enquanto só potência. A matéria que perfaz o conteúdo ontológico do vegetal e do animal tem a mesma substância mineral, ou seja, é uma matéria que já está atualizada na forma mineral.
Como então a matéria mineral passa a ser vegetal?
Para os mecanicistas, evolucionistas, a matéria mineral, simplesmente por sua ordenação, transforma-se em vegetal, isto é, torna-se matéria viva. Ou seja; Um absurdo completo.
O que na verdade ocorre é algo totalmente distinto. A matéria mineral torna-se vegetal pela assunção de uma nova forma. Assim como a madeira é tal por sua forma substancial, e passa a ser cinza, mudando de forma substancial, pela ação do fogo, assim também a matéria puramente mineral torna-se vegetal, e portanto viva, por uma mudança de forma substancial.
Entretanto, resta responder uma questão crucial: O que faz a matéria mineral mudar para a forma substancial vegetal?
Nada passa de potência latente para ato consumado por si mesmo. Todo o movimento exige que o ser em potência para uma qualidade, receba essa mesma qualidade de outro ser que já a possua em ato concreto.
Tendo a matéria mineral a potência de se tornar viva pela assunção de uma nova forma substancial, é necessário que essa forma seja dada (pelo menos inicialmente) por outro ser que não seja a pura matéria mineral que, estando em potência para a vida não pode tê-la atualmente.
A vida vegetal e a vida animal não são, nem o resultado de uma ordenação mecânica, nem a inserção de não se sabe bem o quê, mas simplesmente a forma substancial vegetal (puramente material) da planta, e a forma substancial animal (puramente material) do animal.
O bom senso e a metafísica ensinam que, o ser é idêntico a si mesmo (princípio de identidade), pão é pão, pedra é pedra. Uma coisa não pode ser e não ser, ao mesmo tempo, sob o mesmo aspeto (princípio de não-contradição). Estes dois princípios são decorrentes da própria noção do Ser Absoluto, Deus.
Com efeito, repugna à perfeição do Ser absoluto a possibilidade de mudança. O Ser perfeito não pode nem tornar-se mais perfeito, nem decair de perfeição. Deus, sendo puro Ato, sem nenhuma potência, é incapaz de qualquer mudança. Mudar é passar de potência de uma qualidade para a realização ou posse dessa qualidade. Deus não tem potência passiva. Logo, Deus não pode mudar. O Ser por excelência é imutável.
Perante o Ser absoluto, só há duas visões possíveis: Ou se admite o que Ele é, como Ele é, ou se nega, afirmando que Ele não existe (ateísmo) e que só existe a mudança (Gnose).
Os seres criados são seres por analogia com relação ao Ser absoluto. Todo o ser criado tem qualidades em ato e qualidades que pode vir a ter, que estão em potência. Portanto, mudança ou movimento é a passagem de potência de uma qualidade, para a realização dessa mesma qualidade. Mudar é passar de potência para ato, com relação a uma determinada qualidade.
O movimento em causa, não é simplesmente o movimento físico, como de alguém que se desloca de um lado para o outro, o termo movimento, na metafísica, significa mudança, passagem da potência ao ato, a concretização de uma possibilidade. A mudança de local é apenas um tipo de mudança.
O movimento é traduzido pela fórmula:
(M=PX-AX) Mudança = Potencia de X para Ato de X
Notamos, porém, que há coisas que mudam, quase todas as coisas que vemos são mutáveis, mas se algo muda, existe também aquilo que é imutável e absoluto. A verdade não se altera, a verdade é permanente, o quadrado da hipotenusa será sempre igual à soma dos quadrados catetos, a soma dos ângulos internos de um triângulo será sempre 180º, o que é verdade hoje, será sempre verdade amanha.
Nas coisas que mudam, verificamos que certas qualidades existentes são factuais, mas, existe uma capacidade (potencialidade), no ser, para as qualidades que podem ser recebidas. Então, podemos notar, qualidades existentes que se dizem em ato, isto é, realizadas, e também, qualidades que podem vir a existir, isto é, em potência.
Na natureza podemos observar que as coisas mudam, mas nada muda por si mesmo, ou seja; se o ser mudasse sozinho, ele teria que ter determinada qualidade, em potencia, ainda por receber, dentro de si mesmo, o quer seria uma incongruência. Se o ser tem potência de receber determinada qualidade, é porque ainda não a possui.
Nada pode mudar sozinho. Vejamos, por exemplo, uma estátua de ferro com potência para adquirir ferrugem, no entanto ela não se enferruja por si mesma, a oxidação dá-se porque a humidade, na atmosfera, possui oxigénio e como o ferro tem potência de receber oxigénio, torna-se oxidado, com óxido de ferro.
Então, um ser que tenha potencia para determinada qualidade, tem que receber essa mesma qualidade de um outro ser, ou seja; o ser em ato, dá a qualidade que ele possui para outro ser que tenha potencialidade para essa mesma qualidade.
A mudança de potência para ato realizado, dá-se da seguinte maneira:
No ser que muda, a potência existe antes que o ato, mas, no fenómeno da mudança, o ato precede a potência. É extremamente importante compreender isto.

Vemos na natureza, uma serie enorme de mudanças.

Se um ser está em potência de uma qualidade, e passa para ato, é porque recebeu de um outro ser, essa mesma qualidade. Este ser anterior tem aquela qualidade em ato, mas se ele tem aquela qualidade em ato, é porque antes, também ele tinha potência de receber essa qualidade em ato. Só pode haver uma qualidade em ato, se existiu antes uma potência, nesse mesmo ser.

As mudanças precedem-se, continuamente, de potência para ato. Uma serie enorme de movimentos são formados na natureza, a pergunta que se faz é a seguinte:

Esta serie enorme de movimentos, um depois do outro, passando uma qualidade, de um para outro, ou ela é uma serie infinita, ou ela é finita.

Vamos examinar as duas possibilidades.

Se a serie de movimentos fosse infinita, ela não teria princípio. Não haveria 1ª mudança, nem 2ª, nem 3ª, nem 4ª, nem 5ª, e aí por diante. Não haveria mudança nenhuma.

Então é falso que a serie seja infinita.

Esta sequência de movimentos não pode ser infinita porque ela é composta de pequenos movimentos separados. Ora, o infinito não é divisível em fazes ou momentos, o infinito dividido por 2 é infinito, por 5 é infinito, por 10, é infinito.

O infinito é indivisível e esta sequência de movimentos está dividida. Logo, esta serie de movimentos, tem que ser finita. Sucedeu um início.

Cada movimento começa por potência que passa para ato, se a sequência fosse infinita, então teria que existir, sempre, a potência no início. Mas o mudar exige primeiro o ato. Logo existe um primeiro Ser em grau absoluto, com todas as qualidades em grau máximo (Ato Puro).

A metafísica na ideia é a superioridade do ato sobre a potência e sua anterioridade em termos absolutos, tudo o que está efetivamente realizado, ou seja, tudo o que é, está em ato de perfeição. Um ente que muda é imperfeito porque está prestes a adquirir ou perder algo, o que lhe denota a finitude ou contingência.

Todo o ser criado muda. A negação de que os seres contingentes mudam, é colocar as criaturas ao nível do Criador, e isto é panteísmo grosseiro. Foi este o erro de Parmênides, ao não distinguir os seres pelo princípio da analogia, e afirmando então que só existe o Ser absoluto, imutável. Ao cair nesse erro, ele identificava o ser da pedra com o ser divino, e tinha, então, que negar a evidência das mudanças.

Heráclito caiu no erro oposto ao afirmar que só havia a mudança sem que existisse um sujeito que mudava. Deste modo, Heráclito negava o ser e caia na Gnose. Tal como os naturalistas da teoria sintética moderna.

Os seres criados são análogos, isto é, semelhantes ao Ser absoluto. Nos seres por analogia, algo não muda e algo muda. Cada ser análogo é o que é, por sua forma substancial. Tudo o que existe é ser, porém, as coisas que encontramos no universo apenas têm o ser. Não são o Ser. O conceito de ser não é nem unívoco, nem equívoco, mas análogo.

Ser, em sentido próprio e absoluto, é aquilo que existe por si mesmo, que é imutável, eterno e infinito. Em sentido estrito, só Deus é Ser. As coisas que Deus criou são semelhantes a Ele em graus diversos. Na medida em que uma coisa possui qualidades em ato, nessa mesma medida se parece com o Ser e é ser. As coisas puramente materiais têm a menor analogia com o Ser absoluto, e são, pois, o menor grau de ser possível. Já os vegetais, além de existirem, têm vida.

A forma substancial do homem pode portanto definir-se metafisicamente, como a forma substancial de um corpo vivo. Por conseguinte, o espírito e o corpo não são dois entes distintos, mas dois distintos princípios do mesmo ente.

Com efeito, também a forma substancial é capaz de mudanças, a madeira queimada torna-se cinza, mas ela não pode ser madeira e cinza ao mesmo tempo. Nem é capaz de mudar por si mesma. Para mudar, ela tem que receber a qualidade para a qual está em potência, de outro ser, que tenha aquela qualidade em ato. O fogo.

Se assim não fosse, toda e qualquer alteração seria acidental, secundária, sem que a diferença se distinga do pressuposto diferencial. Um cadáver não é um corpo humano, aqui, sim, temos um agregado acidental de células, despojado de toda e qualquer unidade essencial ou substancial. Os argumentos mecanicistas são incapazes de explicar o mundo inorgânico, falham completamente no confronto com o mundo material. Eles consistem em afirmar a ausência de forças irredutíveis aos fatores físico-químicos.

Ainda segundo os argumentos mecanicistas, no organismo de tais “entidades imateriais”, tudo se dá em razão de reações complexas destes fatores, além disso, como função alguma é absolutamente própria ao domínio da vida, os limites entre o inorgânico e o orgânico, se existem, são de todo imprecisos e indiscerníveis.

Tudo quanto há na criação, ainda que se trate de uma partícula atómica, é já uma síntese matéria-forma, é uma dualidade ontológica, é impossível existir matéria sem forma. Por conseguinte, a potência não é algo que se possa figurar visível nem percetível. Sem este princípio quântico seria impossível compreender a mescla de estabilidade e mudança de uma modificação substancial.

Para o evolucionismo, tal não acontece. O ser teria, em si mesmo, uma força imanente que o levaria necessariamente a fazer desabrochar o que nele já existia em estado latente. O primeiro e único ser seria como uma semente da qual desabrochou todo o universo. Como afirma a dialética hegeliana, “o ser é o que não é, e não é o que ele é.”

Observamos, então, que há uma estreita relação entre o evolucionismo e uma conceção monista panteísta do ser, semelhante a uma visão gnóstico-dialética do universo. De qualquer modo, o evolucionismo afirma um igualitarismo metafísico. No fundo, todas as coisas seriam transformações de um único ser, intrínseco à matéria, pois em ambas as variantes (panteísta ou gnóstica) nega-se que o universo tenha sido criado por um Deus transcendente.

O que é a criação?

A criação significa, no mais fundamental nível, que Deus criou o mundo sem matéria pré-existente, ou pré-estados de forças indeterminadas. Deus cria livremente do nada, e é absolutamente transcendente à sua criação.

A criação não é uma mudança, mas uma relação continua de ontológica dependência das criaturas com Deus. A criação não é um momento no tempo, ou um evento passado, mas uma atividade continua de Deus, de como Ele mantém todas as coisas no ser, em cada instante.

Em contraste com Deus, ser criatura significa receber o ser, para ser causado e participar da existência, as criaturas caracterizam todas as coisas finitas, são contingentes, enquanto Deus é absolutamente necessário. Só Deus é, absolutamente, aquilo que subsiste por si mesmo, a sua própria essência é ser, existir. Deus é causa não causada e não poderia não existir.

Deus criou o mundo, a partir do nada (ex nihilo) e não a partir de si (ex Deo), o mundo veio de Deus, Ele foi a sua causa, mas não a sua substância. O mundo veio a existir por Ele, mas não é feito dEle.

Criar do nada é fazer surgir a criatura da não existência. Não significa que Deus preenche a criatura, ou que a essência divina está na matéria. Ele apenas lhe dá o ser, sendo que Deus é o próprio Ser.

Como o Ser absoluto pode criar do nada?

O universo antes de existir, não existia.
Deus fez algo que, antes de ser feito, não tinha existência, quer nele ou em outro lugar. Não existe um dualismo, como se Deus e o nada fossem duas substâncias eternas. Deus é eterno, o nada nem tão pouco existe. Conceber o nada como algo coexistindo com o próprio Deus, é um exercício mental que pressupõe duas realidades separadas para descortinar o paradigma da existência, de algo que não existe, nem se pode imaginar.

Se tentarmos conceber o nada, vamos cair na realidade do não ser. A existência de um nada absoluto seria colocar o incognoscível como parte da existência, e disto resultaria que a ausência da matéria é uma existência com potencial por essência.

Acontece que toda a essência provém do Criador, puro ato onde não há potencia.
Com efeito, antes do tempo, antes do espaço, antes das leis da física, antes que qualquer criatura existisse, Deus, em sua eternidade, preenche o absoluto. O mundo não é fruto duma qualquer necessidade, dum destino cego ou do acaso, a criação tão pouco é uma emanação necessária da substância divina, mas procede da livre vontade de Deus.

Romão Casals

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